quinta-feira, 29 de março de 2012

Sem título

Não costumo referir nomes no meu blog.
Falo muitas vezes dos meus doentes e, às vezes, questiono-me sobre o sigilo profissional que me compete.
A maior parte das vezes não me sinto culpada. Até porque, para quem está fora do meu mundo, é difícil identificar as pessoas em questão.
E, além disso, o meu blog é lido por dez pessoas, se tanto.

Vou abrir aqui um parênteses.
Vou falar da A. outra vez.
O nome dela é Alcinda.
Vocês não a conhecem. Provavelmente nem conseguem pintar os cenários. Nem os acham engraçados.
Mas a A., com o seu feitio difícil, fez-me sentir muito muito especial.

Hoje despedi-me dela.

- Vou trabalhar para o Sul, Alcinda.
- Ai vais? Pagam-te bem, ao menos?
- Mais ou menos. Mas é um hospital, sabes. Vou aprender coisas novas...
- Se eu fosse rica, pagava-te para estares sempre comigo.
- Ui, fartavas-te logo de mim - a disfarçar a emoção.
- Sabes, vou ter saudades tuas, filha.
- E eu Alcinda, e eu... De me rir contigo.
- De te rires comigo? Que-graça-que-te-acho-cara-de-tacho.
- Alcinda... Um dia escrevo um livro com as coisas que tu me dizes.
- Ó, hás-de te lembrar muito.
Mal ela sabe que me lembro. E escrevo um livro, sim. De memórias.


Eram onze e meia. Hora a que os doentes dependentes comem. Os outros é ao meio dia.
Hoje, a Alcinda queria-porque-queria comer mais cedo.
As auxiliares da cantina não deixaram.
Barafustou e, como é óbvio, foi ignorada.

- Deixa lá Alcinda. Ficas aqui de treta comigo. Meia hora passa num instante.
- Ó, 'tou-farta-disto-rais-parta-esta-merda...
- Olha, 'tou aqui a pensar... Quando eu chegar lá baixo mando-te um postal, pode ser?
- Manda, manda. Ainda vou lá passar férias contigo.
- Que maravilha - sabendo perfeitamente que é impossível - e vamos à praia juntas e tudo.
Ela riu-se. Depois, falou meia hora da vida dela em Lisboa.

- Pronto Alcinda, é meio dia. Hora da bucha. Vamos?


Braços dados, eu a acompanhá-la devagarinho.
Saio da cantina. O Sr. V. chama-me.
- Menina, eu não sei o que você lhe faz. Se a menina não estivesse aqui ela armava já um trinta e um por causa do almoço. Aquela velha é tola, não sei como aguenta... Ela atina consigo, se não...
Sorri.
- Temos de ser uns para os outros. É preciso saber levá-la. Ter um bocadinho de paciência...


E é isto.
A Alcinda, que reclama com toda a gente, é insensível aos problemas dos outros, critica, pragueja, é conhecida como tola, ignorada pelo pessoal e pelos outros doentes, mal falada pelas costas... Esta mesma mulher conversou comigo meia hora, enquanto me fazia festinhas na perna. Fez-me rir, todos os dias em que me cruzei com ela. Dirigiu-me bocas foleiras, mas brindou-me com carinho com o qual não estava à espera.

A Alcinda fez-me acreditar que, apesar dos meus problemas de expressão, apesar das minhas dificuldades em passar para palavras o que me vai na cabeça, até tenho capacidades relacionais.
Coisa da qual eu já duvidei. Aliás, às vezes acredito ser sociopata. Ou autista.

Alcinda, que saudades já tenho sem ainda ter partido.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Progressos

Hoje, assobiava eu, enquanto aplicava spray nos joelhos artríticos da A..

- Cantas muito bem, pareces um grilo.

Olhei para ela e rimo-nos como nunca antes.

segunda-feira, 19 de março de 2012

De como brindar um pai com um orçamento miserável

Quando o meu pai fez anos, eu estava na Guiné e consegui rede no telemóvel para lhe ligar. Acho que ele gostou da prenda.

Acontece que o meu pai não é homem de prendas.
Há uns tempos comprei-lhe um perfume caro. Todos os dias usa uma água de colónia foleira do Continente.
E o Yves Saint Laurent continua no cesto da casa-de-banho. À espera de algum dia importante, tipo o dia do meu casamento.

Hoje é o dia do pai e decidi comprar alguma coisa que ele use, realmente.
Pensei numa caixa de chocolates que ele ia adorar do fundo do coração. Mas sendo eu enfermeira e ele diabético achei melhor não.

Comprei uma garrafa de vinho.
Escrevi um texto giro em cartolina. Usei duas fitinhas - daquelas que vêm na parte de dentro da roupa, para facilitar pendurá-las nos cabides - et voilá.



O bom de ir ao Continente - e não a uma loja gourmet, ou lá como se escreve - é que há vinhos para todas as carteiras.

E o meu pai é o melhor de todos.

domingo, 18 de março de 2012

quinta-feira, 15 de março de 2012

Eu e os velhos (ou post demasiado longo para alguém ler)

No outro dia, chego ao lar de botas de tacão alto.
A A., de quem já falei outras vezes, à entrada.

No corredor só se ouve o toc-toc dos meus tacões.
Ela olha para mim de alto a baixo.

- Ai! Onde vais tu, toda tirité?
- Ahahah! Bom dia, A.. Vim trabalhar...
- Com essas galochas mais parece que vais montar a cavalo. Vê lá se calças uns sapatos de jeito, mas é.


A A. e o seu bom-humor matinal.
Chamem-me tolinha, mas eu a-do-ro.

Os outros velhos, quando me vêem com ela, de braços dados, olham-me de esguelha. Ela sempre a reclamar. Eles reviram os olhos, não lhe ligam nenhuma, ainda me sussuram não sei como a menina têm paciência...


Eu tenho paciência, eventualmente, porque não convivo com a A. 24 horas por dia. Nem trabalho no lar a regime de oito-horas-por-dia-cinco-dias-por-semana. Deve ser por isso.

A A. consegue ser extremamente desagradável com os outros residentes. Bem sei.

Uma senhora com Alzheimer, perguntou-me no outro dia:
- Menina, a que horas passa a carreira?
A A. olha para ela:
- Que carreira? Aqui num passa carreira nenhuma, ó. Deixa de ser tola.


Há um senhor no lado das enfermarias que grita a manhã toda.
A A. volta e meia imita-o. Depois acrescenta:
- Tanto grito, tanta merda. 'Tou cheia disto, foge...


Tento explicar-lhe que os outros residentes têm problemas de memória, de orientação, de fala, de força. Mas nada a comove, a não ser os seus problemas.
Tento pregar-lhe um bocadinho de compreensão. De solidariedade para com os outros.
Mas, num piscar de olhos, sou obrigada a desviar a conversa porque um senhor quer fazer xixi.

- A., preciso de ajudar este senhor a ir à casa de banho.
- Vai, vai. E segura-lhe na mangueira, também.


Hoje fui de sapatilhas.
Passo pela A. Ela reclama.
Dou-lhe dois minutos de atenção. Que é quanto, geralmente, preciso para fazê-la rir.
Mas hoje ela nem repara nos meus sapatos, nem nos brincos, nem em nada.
- Anda vai-te embora. Deixa-me em paz.


Fui e voltei ao fim de uma hora. Agora com mais tempo.
- Então A.. Que se passa? Hoje não me podes ver nem pintada... 'Tás zangada comigo? [Pediu-me há uns tempos para tratá-la por tu; você é para as madames. É A. abaixo, A. acima, palavras dela]
- Ó. Outra vez tu?
- Fogo. 'Tás mesmo zangada comigo...
- Ó, não é só contigo. É contigo e com meio mundo.
- Então? Conta-me lá.
- Esta canalha, que só faz asneiras...
- Como assim? Conta-me...
- Olha. A minha neta. Dezoito anos. Conheceu um gajo e olha. Três-vezes-nove-vinte-e-sete. [na primária, eu aprendi esta expressão para o roubar, não propriamente para o truca-truca]
Não digo nada. À espera que ela continue.
- 'Tás a ver. Por isso tu tem juizinho...


A neta da A. está grávida.
Ouvia-a falar durante 15 minutos. Depois acompanhei-a até ao refeitório.

- Pronto A.. Estás entregue. Bom-apetite.
- Obrigada filha.
- Dê-me lá um abraço. Hoje foi muito má para mim.
Ela riu-se, quase contrariada. Deu-me um abraço. - Que Deus, nosso Senhor, te abençoe.


E eu fiquei contente. Não por este acto de bondade me ter sido dirigido a mim.
Mas por perceber que a A., lá no fundo, no fundo, também consegue sentir coisas boas.

quarta-feira, 14 de março de 2012

I'm a lady

A concentração de hormonas no meu corpo está a atingir níveis perigosos.

Os meus mamilos estão capazes de furar qualquer camisola que eu vista.
O meu apetite pirou de vez.

As bolachas maria têm mais interesse do que as tarteletes de chocolate.
O meu lanche inclui arroz.

Ser mulher é lindo!

sábado, 10 de março de 2012

O que é que me faz ir ao ginásio day after day after day?

Achar que ainda é possível vir a ter uma barriga destas...


O cúmulo da contraproducência

É ir ao ginásio, dar o litro para queimar quinhentas calorias, chegar a casa e comer duas fatias de cheesecake.

E ainda sonhar, um dia, ser como a Pina Bausch.


PS: Quase consigo um post da categoria do Aflito, que escreve os absurdos mais engraçados que eu já li na blogosfera.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulheres


A partir de hoje, vamos ser mais felizes.
Vamos sorrir mais. Abraçar mais. Perdoar mais. Passar mais tempo juntas.

Vamos ser mais tolerantes.
Com a velha sem força que atrasa a fila do supermercado.
Com a vizinha punk do segundo esquerdo.
Com a loira boazona do nosso trabalho.

Vamos ser menos invejosas. Menos hipócritas.
Vamos ser menos tamanhos de roupa. Menos estrias, celulite e varizes.
Menos rugas e manchas de pele.

Vamos à luta.
Para sermos menos tapadas.
Menos caladas.
Menos apedrejadas.
Menos queimadas vivas.
Menos vendidas.

Um bom dia para vocês. Senhoras, meninas, mulheres :)

terça-feira, 6 de março de 2012

Obrigada M.


Por me perdoares.
E pela prenda mais bonita que eu já recebi nos últimos anos.