terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Querido Pai Natal


É isto!
:)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Querido espelho da Stradivarius:

Obrigada.
Andava há dois dias em formação com enfermeiras chiques e não me tinha apercebido de que estou com um bigode maior que o do meu pai.

Fizeste-me ir ao Jumbo, de propósito, gastar quase cinco euros numa pinça miserável!

Está uma mulher de soutien e calças de pijama, na casa de banho da pousada da juventude, a arrancar o bigode, quando entra um indivíduo do sexo masculino, loiro albino, com todo o ar de estrangeiro, e fica congelado a olhar para mim. Não diz uma palavra.

Viro-me de frente para ele.
- Ladies washroom.
Sorrio. (Sou mesmo uma bomba latina).

Atabalhoado, no meio de tantos I'm so sorry e olhos pousados no meu soutien preto rendado, dá meia volta e desaparece.

Continuo a arrancar pêlos do buço.
A rever mentalmente a medicação utilizada para alívio dos sintomas mais frequentes num doente terminal.
Amanhã tenho avaliação.
Já disse que adoro cuidados paliativos?

domingo, 2 de dezembro de 2012

Estranho...

De repente queres partilhar casa, ter filhos, ter rotinas de casal.

:)

sábado, 17 de novembro de 2012

O curioso caso de Rita Martins

Cada vez estou mais bebé.

A cada dia que passa, preciso mais do colo da minha mãe.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Tipo, é assim...

O meu blog é um blog sério.
Por isso vou falar de coisas sérias.
Tipo, a minha tensão pré-menstrual.


Há uma semana que em vez de mamas, tenho dois calhaus ao peito.
O meu humor anda eufórico. Por isso fecho-me em casa.
Aterro no sofá e tapo-me até às orelhas. Ouço músicas que me fazem chorar até a cabeça começar arder.
Sinto-me um bisonte de gorda.

Hoje andava no serviço. Em vez de carregar um útero, carregava um halter de cinco quilos no baixo ventre.
É lindo estar a dar banho a um doente e menstruar. Assim de repente.
Fui ao piso 1 buscar pensos higiénicos ao armário de material. O meu chefe, que é tão gay e eu adoro, fica a olhar para mim.

- O que é? Já não se pode menstruar neste hospital?
- Ai, menstruação... Que nojo.

Tomei butilescopalamina.
Que não fez nada.

Depois falei com o meu amor ao telefone e fiquei melhor.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Sem título

O J. era um doente conhecido do serviço.
Já lá tinha estado duas ou três vezes. Sempre com infecções respiratórias.
Desta vez, deu entrada no nosso serviço de urgência a saturar a 73%.

O J. perdeu a capacidade de falar.
Os olhos já estavam vidrados.
Máscara de Venturi. Oxigénio a 15 litros. Saturações nunca superiores a 90.

- Doutora. Se este homem descompensa... É para reanimá-lo?
- Não tinha pensado nisso... Tenho de falar com a  filha...


O J. passou a DNR - do not resuscitate.
E há uns dias, finalmente, partiu.

Cansado do esforço respiratório, o coração começou a bater devagarinho. Até parar.
Não foi no meu turno.

Fui ao Hospital, fazer a minha entrevista de avaliação de desempenho.
E lá estava a filha na Recepção.

Fui ao encontro dela.
Ela abraçou-me. Agradeceu-me.
Disse que a minha equipa foi fantástica.
Disse que, num momento tão difícil, se sentiu entre amigos.

E o gesto daquela mulher desolada, fez-me sentir o peito tão cheio.
Fez-me sentir tanto orgulho.
Da equipa que trabalha comigo.
De mim.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Nocas,

No outro dia estava na cama, prestes a dormir.
Lembrei-me daquele Verão, quando fomos jantar à casa do E.
E demos cabo do carro naquela quelha em que mal cabia uma bicicleta.

Vieram-me as lágrimas aos olhos, perdida de riso.

Que saudades de tempos que já lá vão.
E que ficam para sempre.

:)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Outubro

Íamos de carro.
Chovia lá fora e a rádio ligada.

"Mulher, tu sabes o quanto eu te amo, o quanto eu gosto de ti".

Pronunciaste todas as palavras, enquanto olhavas para mim.

E eu quis ficar assim para sempre.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Há dois anos trabalhava nas caixas do Continente

Para juntar dinheiro para trabalhar em Inglaterra.


Há dois dias ajudei a salvar um homem com um pré edema agudo do pulmão.

E sinto que me tornei tão crescida em dois anos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Afinal ainda me lembro como se trabalha...

Vim de férias.
Pensei que o primeiro dia de regresso ao trabalho me ia custar muito muito muito.

Afinal não custou tanto assim.

Entrei no quarto da V..
Uma senhora afásica - que é o palavrão médico para designar quem não fala.
Foi vítima de uma AVC hemorrágico.

A V.. não fala, mas quando entro no quarto e começo cantar a música pimba, junto com os cantores que actuam no programa da manhã da RTP, ela ri-se de mim.

Hoje, eu e a enfermeira a quem fiz integração (ó p'ra mim, que competente), falávamos de comida.

- Ai - digo eu - eu não posso comer dessas coisas. Ando a trabalhar p'rá elegância.
A V. começou-se a rir.

Provavelmente a pensar que tal comentário, vindo de uma pessoa com o meu tamanho, é mesmo mentira.

Sim,

Este blog está lamechas que chegue.

Tal e qual como eu.

Só para dizer, não é que interesse a alguém mas... esta noite não dormi bem.

Senti falta das tuas pernas entrelaçadas nas minhas.
Dos teus pés macios.
Do teu cheiro ao acordar.

Sinto saudades tuas.
Tanto que o peito arde por dentro.

domingo, 23 de setembro de 2012

Emergência

Ontem, disseste-me tudo aquilo que eu queria ouvir.
Todas as minhas cavidades cardíacas entraram em fibrilhação. E eu senti que podia morrer de tanta felicidade.

Tu tão perto de mim. E a sala cheia de gente.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Amanhecer

Os olhos pequeninos.
O sorriso emaranhado de sono.
O cheiro da pele.

Hum... :)

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Foi em Abril de 2010

Que comecei a fazer dieta. À bruta.
Julho do mesmo ano. Cinquenta e sete quilos e meio. Quase dez perdidos, portanto.
Julho do ano seguinte. Doze quilos em cima.

Um ano.
Um ano descompensada. Em que que a vida passou por mim. E eu tenho a sensação de que não fui eu a vivê-la.
Sabem...? É como se me visse num filme...

Durante um ano, eu cometi atrocidades alimentares.
Comi tanta coisa que nem dá para acreditar.


Se não estivesse bulímica, em vez de chegar aos setenta, teria chegado aos cem quilos.
Era capaz de, num dia de folga, comer e vomitar umas dez vezes? Vinte vezes?
E por mais que comesse, o vazio permanecia lá.
O vazio que não era preenchido com comida.

Agosto de 2012.
Ainda não curada.
Cinco meses em dieta - dois anos a recuperar dela.
O meu estômago tem memória dos dias em que a sua elasticidade foi levada ao limite.

Se eu comer uma pizza inteira, sei que vou vomitar parte dela. O meu cérebro reconhece quando o meu estômago distende para além daquele ponto. O resto desencadeia-se rápido demais e eu perco o controlo.

Mas nem tudo está perdido. Tornei-me esperta. Em vez de uma pizza inteira, como quatro fatias e deixo-as transformarem-se em gordura no meu corpo. Tento não pensar muito nisso.

Tenho manias.
Só bebo coca-cola zero ou diet.
Uso sempre adoçante no café.
O leite, os iogurtes e o queijo têm de ser magros.
Engano a fome com cigarros.
Compro daquelas gelatinas que só têm dez caloria por pote.

Durante muito tempo, perdi a vontade de me pesar. De me medir. De ter noção do quão grande estava.
Ainda há uns meses, quando fiz a avaliação física no ginásio de Portimão, pedi ao professor para não me dizer valores. Nenhuns.
Mas há coisa de dois dias, ganhei coragem. Subi para a balança do meu serviço.
Olhei em frente, sem coragem de encarar um número.

A balança do meu serviço está completamente descalibrada e diz que eu peso 56,8 quilos.

Eu até gostava que fosse verdade.
O simples facto de estar abaixo dos 60 deixar-me-ia contente.
Acontece que eu não me sinto mais magra. Nem quando os meus colegas de trabalho me lembram disso.
Eu bem olho ao espelho. Mas continuo a ver ancas demasiado salientes. Joelhos demasiados cheios. Celulite na parte de trás das coxas...

Respiro fundo.

Hoje é o último dia de Agosto de 2012.
Nos últimos cinco meses tenho sido feliz ao ponto de não caber em mim. Ao ponto de, às vezes, nem me considerar merecedora de tanta alegria.
Ponho-me a pensar que o caminho até aqui não foi propriamente simples. Mas se não fosse esse o caminho, eu não teria vindo cá parar.
Ou tinha? :)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Adoro malucos

- Enfermeira, não consigo dormir com estas calças.
- Sr. M., não posso tirar-lhe o cinto. Eu sei que vai tentar levantar-se. Vai cair. E depois a responsabilidade é minha. E depois?
- Não faz mal. Eu tenho uns amigos que tratam disso.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

No Algarve


Há muitas pessoas.
E muitas pessoas… diferentes, chamemos-lhes assim.
Pessoas que saem de casa e não têm vergonha de mostrar quem são.
Que estão dispostas a levar com olhares. Gozo. Reprovação.
Mas ainda assim, preferem não fingir.

Eu bebo um bocado e fico insuportável. 
Falo com toda a gente. Implico, faço rir, rio-me, danço até o corpo não aguentar mais.

Ontem, na fila para um bar, vi aquilo que me pareceu ser um rapaz de 15 anos.
Falamos um bocadinho. Como devem imaginar, a minha taxa de alcoolémia na altura impediu-me de gravar o diálogo como habitualmente faço.

Só me lembro de qualquer coisa como:
- E tu estás a pensar que eu sou um rapaz, não é?

Olhei-lhe para o peito e vi que tinha maminhas.

Ela reparou na minha cara de confusa. Olhei para ela, ri-me, abraçamo-nos.
Ela voltou à mesa dos LGBT. Uma mesa cheia de aves raras.
Que saem de casa sem medo de ser quem são :)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

E partiu

O P.
De quem falei no post anterior. Morreu ontem à noite.
Estavamos na passagem de turno.
O monitor registou uma bradicardia de 40. 32. Voltou aos 60. 50. Assistolia.
A minha colega passava o turno.

Levantei-me e fui ao quarto.
O corpo branco.
Já sem dificuldade respiratória. Já sem pulso na jugular.
Fechei-lhe os olhos.

O meu trabalho deixa-me ver muita coisa.
O início e o fim da vida.
E tudo o que acontece no meio.

domingo, 10 de junho de 2012

Olho para o P.


O corpo é frágil, magro.
A língua é uma pedra de tão desidratada.
Os olhos reviram
Os rins falham.
Tem espasmos.

Hoje aspirei-o.
Só porcaria a dificultar-lhe a respiração. E ele sem conseguir tossir.

O P. já não come.
Os meus colegas queriam entubá-lo.
Felizmente o médico não concordou.

Alimentar um corpo que está praticamente morto faz-me confusão.
Mas isso sou eu, que ao que parece, sou cruel e quero matá-lo à fome.

Penso no fio que o mantém aqui.
No fio que nos mantém aqui. A nós todos.
Como é frágil.

E apesar disso, no meu trabalho manipulamos o fio, muitas vezes com sucesso.

Já disse que adoro ser enfermeira?
E que no fim do primeiro ano da faculdade não me via a fazer isto?

domingo, 27 de maio de 2012

Ainda há pouco falava com a minha tia

Sobre um amigo meu. 
Que é gay.
E ela perguntava como seria um homem beijar outro homem. O que é que eles sentem. Como é que se gostam.
E como isso lhe faz impressão.

Eu, que sou uma depravada aos olhos da minha mamã, encolhi os ombros.
Discutir estas questões chateia-me.
Porque eu não compreendo as dúvidas. As comichões que isso causa.

Tenho muitos amigos gays.
Assisto a beijos entre homens. 
A desejo entre homens.
Falamos de sexo.
De amor. 
Carinho. 
Inseguranças.
Respeito.
Ciúmes.
Jantares em família.

Falamos de relações. De pessoas. Independentemente do género.
Homo ou hetero. 
Amor, paixão e atracção física. Assumem sempre os mesmos contornos.

Por isso.
Meninas, sabem quando os namorados brincam com os vossos mamilos e é bom? É igualmente bom quando as mãos ou a boca são de outra mulher.
E vocês meninos. Quando recebem beijos no pescoço das namoradas. Ou são masturbados. Ou o que for. Um gay sente o mesmo. Mas recebe-o de outro homem.

Se querem alguma coisa que choque realmente. Sei lá.
Leiam sobre o massacre das focas bebés no Canadá.

sábado, 26 de maio de 2012

Antagónico

Da última vez que voei em direcção a Faro, ia de coração cheio.

Cheio de paz. E felicidade. E luz. E todos os sentimentos bons que eu e vocês podemos imaginar.

Ia tão cheia de vida, que pensei que podia morrer.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sai uma destas para a mesa, faxabôr!



Se alguém do hospital descobre este blog, os boatos relativos à minha orientação sexual ganham ainda mais sentido.

E eu estou tão preocupada com isso que vou ali chorar um bocadinho e tomar anti-depressivos.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Em Portimão

Muitos doentes no serviço.
Acabo a passagem de turno às nove da manhã.
Trabalhei dezassete horas.

Saio do hospital e é dia. O sol brilha. Não está muito calor.
Decido ir à praia, apesar de me sentir gorda.
Vou à Sport Zone comprar um bikini. Estou efectivamente gorda.
Mordo o lábio para não chorar. Amuo.
Pago trinta euros por um bikini com muito pano.

Vou ao Continente fazer compras para a semana.
Tomo o pequeno-almoço em casa. Pão com sementes. Queijo. Maçã. Café.

Olho pela janela enquanto como. Esforço-me por comer devagar.
Estou cansada, com sonos em atraso.
E feliz.

O meu trabalho deixa-me muito feliz.
O meu trabalho tem sido a minha salvação.
Sinto-me burra muitas vezes. E há um médico - malcriado! - que faz questão de me lembrar isso mesmo, cada vez que visita um doente. Eu, que até mantenho a calma e tenho paciência inesgotável, estive a um milímetro de o mandar p'ró caralho. E também não sou de asneiras...

Bem.
A minha cabeça anda ocupada. Com traçados de ECG, interpretação de análises, medicação que nem sei pronunciar o nome.
Enquanto isso...

Os espelhos já não são tão repugnantes. E a balança do serviço... Já estive mais longe de subir para cima dela.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Era um dia de sol, íamos no carro, tu de calças de ganga e casaco azul.
Cantavas. A tua mão no meu joelho.
E aquela luz.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Lá porque não escrevo

Não quer dizer que não tenha nada a dizer.

A minha vida deu mais uma volta. Mais uma, só isso.
E eu estou em paz. Com o coração a rebentar de felicidade e sem saber o que fazer com isto tudo.
Tenho dificuldade em organizar as ideias. Passá-las para o papel.
Quero escolher as palavras, mas elas perdem-se no meio da euforia.

Tenho amor incondicional dentro de mim.
Sinto-me nem-sei-bem-que-palavra-usar. E só tenho medo que isto acabe rápido.
E eu volte aos dias em que fui sombra. Aos dias em que evitei espelhos. Aos dias em que guerreei comigo mesma e estive prestes-prestes a perder a batalha.
Às vezes, até me pergunto se mereço esta paz, por fim.

No outro dia lembrei-me do ano em que fui à Zambujeira do Mar. E vi o David Guetta.
E me emocionei profundamente com música de discoteca, lasers, robôts e pessoas com o telemóvel a brilhar no escuro.

Esta música faz-me voar :)



quinta-feira, 29 de março de 2012

Sem título

Não costumo referir nomes no meu blog.
Falo muitas vezes dos meus doentes e, às vezes, questiono-me sobre o sigilo profissional que me compete.
A maior parte das vezes não me sinto culpada. Até porque, para quem está fora do meu mundo, é difícil identificar as pessoas em questão.
E, além disso, o meu blog é lido por dez pessoas, se tanto.

Vou abrir aqui um parênteses.
Vou falar da A. outra vez.
O nome dela é Alcinda.
Vocês não a conhecem. Provavelmente nem conseguem pintar os cenários. Nem os acham engraçados.
Mas a A., com o seu feitio difícil, fez-me sentir muito muito especial.

Hoje despedi-me dela.

- Vou trabalhar para o Sul, Alcinda.
- Ai vais? Pagam-te bem, ao menos?
- Mais ou menos. Mas é um hospital, sabes. Vou aprender coisas novas...
- Se eu fosse rica, pagava-te para estares sempre comigo.
- Ui, fartavas-te logo de mim - a disfarçar a emoção.
- Sabes, vou ter saudades tuas, filha.
- E eu Alcinda, e eu... De me rir contigo.
- De te rires comigo? Que-graça-que-te-acho-cara-de-tacho.
- Alcinda... Um dia escrevo um livro com as coisas que tu me dizes.
- Ó, hás-de te lembrar muito.
Mal ela sabe que me lembro. E escrevo um livro, sim. De memórias.


Eram onze e meia. Hora a que os doentes dependentes comem. Os outros é ao meio dia.
Hoje, a Alcinda queria-porque-queria comer mais cedo.
As auxiliares da cantina não deixaram.
Barafustou e, como é óbvio, foi ignorada.

- Deixa lá Alcinda. Ficas aqui de treta comigo. Meia hora passa num instante.
- Ó, 'tou-farta-disto-rais-parta-esta-merda...
- Olha, 'tou aqui a pensar... Quando eu chegar lá baixo mando-te um postal, pode ser?
- Manda, manda. Ainda vou lá passar férias contigo.
- Que maravilha - sabendo perfeitamente que é impossível - e vamos à praia juntas e tudo.
Ela riu-se. Depois, falou meia hora da vida dela em Lisboa.

- Pronto Alcinda, é meio dia. Hora da bucha. Vamos?


Braços dados, eu a acompanhá-la devagarinho.
Saio da cantina. O Sr. V. chama-me.
- Menina, eu não sei o que você lhe faz. Se a menina não estivesse aqui ela armava já um trinta e um por causa do almoço. Aquela velha é tola, não sei como aguenta... Ela atina consigo, se não...
Sorri.
- Temos de ser uns para os outros. É preciso saber levá-la. Ter um bocadinho de paciência...


E é isto.
A Alcinda, que reclama com toda a gente, é insensível aos problemas dos outros, critica, pragueja, é conhecida como tola, ignorada pelo pessoal e pelos outros doentes, mal falada pelas costas... Esta mesma mulher conversou comigo meia hora, enquanto me fazia festinhas na perna. Fez-me rir, todos os dias em que me cruzei com ela. Dirigiu-me bocas foleiras, mas brindou-me com carinho com o qual não estava à espera.

A Alcinda fez-me acreditar que, apesar dos meus problemas de expressão, apesar das minhas dificuldades em passar para palavras o que me vai na cabeça, até tenho capacidades relacionais.
Coisa da qual eu já duvidei. Aliás, às vezes acredito ser sociopata. Ou autista.

Alcinda, que saudades já tenho sem ainda ter partido.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Progressos

Hoje, assobiava eu, enquanto aplicava spray nos joelhos artríticos da A..

- Cantas muito bem, pareces um grilo.

Olhei para ela e rimo-nos como nunca antes.

segunda-feira, 19 de março de 2012

De como brindar um pai com um orçamento miserável

Quando o meu pai fez anos, eu estava na Guiné e consegui rede no telemóvel para lhe ligar. Acho que ele gostou da prenda.

Acontece que o meu pai não é homem de prendas.
Há uns tempos comprei-lhe um perfume caro. Todos os dias usa uma água de colónia foleira do Continente.
E o Yves Saint Laurent continua no cesto da casa-de-banho. À espera de algum dia importante, tipo o dia do meu casamento.

Hoje é o dia do pai e decidi comprar alguma coisa que ele use, realmente.
Pensei numa caixa de chocolates que ele ia adorar do fundo do coração. Mas sendo eu enfermeira e ele diabético achei melhor não.

Comprei uma garrafa de vinho.
Escrevi um texto giro em cartolina. Usei duas fitinhas - daquelas que vêm na parte de dentro da roupa, para facilitar pendurá-las nos cabides - et voilá.



O bom de ir ao Continente - e não a uma loja gourmet, ou lá como se escreve - é que há vinhos para todas as carteiras.

E o meu pai é o melhor de todos.

domingo, 18 de março de 2012

quinta-feira, 15 de março de 2012

Eu e os velhos (ou post demasiado longo para alguém ler)

No outro dia, chego ao lar de botas de tacão alto.
A A., de quem já falei outras vezes, à entrada.

No corredor só se ouve o toc-toc dos meus tacões.
Ela olha para mim de alto a baixo.

- Ai! Onde vais tu, toda tirité?
- Ahahah! Bom dia, A.. Vim trabalhar...
- Com essas galochas mais parece que vais montar a cavalo. Vê lá se calças uns sapatos de jeito, mas é.


A A. e o seu bom-humor matinal.
Chamem-me tolinha, mas eu a-do-ro.

Os outros velhos, quando me vêem com ela, de braços dados, olham-me de esguelha. Ela sempre a reclamar. Eles reviram os olhos, não lhe ligam nenhuma, ainda me sussuram não sei como a menina têm paciência...


Eu tenho paciência, eventualmente, porque não convivo com a A. 24 horas por dia. Nem trabalho no lar a regime de oito-horas-por-dia-cinco-dias-por-semana. Deve ser por isso.

A A. consegue ser extremamente desagradável com os outros residentes. Bem sei.

Uma senhora com Alzheimer, perguntou-me no outro dia:
- Menina, a que horas passa a carreira?
A A. olha para ela:
- Que carreira? Aqui num passa carreira nenhuma, ó. Deixa de ser tola.


Há um senhor no lado das enfermarias que grita a manhã toda.
A A. volta e meia imita-o. Depois acrescenta:
- Tanto grito, tanta merda. 'Tou cheia disto, foge...


Tento explicar-lhe que os outros residentes têm problemas de memória, de orientação, de fala, de força. Mas nada a comove, a não ser os seus problemas.
Tento pregar-lhe um bocadinho de compreensão. De solidariedade para com os outros.
Mas, num piscar de olhos, sou obrigada a desviar a conversa porque um senhor quer fazer xixi.

- A., preciso de ajudar este senhor a ir à casa de banho.
- Vai, vai. E segura-lhe na mangueira, também.


Hoje fui de sapatilhas.
Passo pela A. Ela reclama.
Dou-lhe dois minutos de atenção. Que é quanto, geralmente, preciso para fazê-la rir.
Mas hoje ela nem repara nos meus sapatos, nem nos brincos, nem em nada.
- Anda vai-te embora. Deixa-me em paz.


Fui e voltei ao fim de uma hora. Agora com mais tempo.
- Então A.. Que se passa? Hoje não me podes ver nem pintada... 'Tás zangada comigo? [Pediu-me há uns tempos para tratá-la por tu; você é para as madames. É A. abaixo, A. acima, palavras dela]
- Ó. Outra vez tu?
- Fogo. 'Tás mesmo zangada comigo...
- Ó, não é só contigo. É contigo e com meio mundo.
- Então? Conta-me lá.
- Esta canalha, que só faz asneiras...
- Como assim? Conta-me...
- Olha. A minha neta. Dezoito anos. Conheceu um gajo e olha. Três-vezes-nove-vinte-e-sete. [na primária, eu aprendi esta expressão para o roubar, não propriamente para o truca-truca]
Não digo nada. À espera que ela continue.
- 'Tás a ver. Por isso tu tem juizinho...


A neta da A. está grávida.
Ouvia-a falar durante 15 minutos. Depois acompanhei-a até ao refeitório.

- Pronto A.. Estás entregue. Bom-apetite.
- Obrigada filha.
- Dê-me lá um abraço. Hoje foi muito má para mim.
Ela riu-se, quase contrariada. Deu-me um abraço. - Que Deus, nosso Senhor, te abençoe.


E eu fiquei contente. Não por este acto de bondade me ter sido dirigido a mim.
Mas por perceber que a A., lá no fundo, no fundo, também consegue sentir coisas boas.

quarta-feira, 14 de março de 2012

I'm a lady

A concentração de hormonas no meu corpo está a atingir níveis perigosos.

Os meus mamilos estão capazes de furar qualquer camisola que eu vista.
O meu apetite pirou de vez.

As bolachas maria têm mais interesse do que as tarteletes de chocolate.
O meu lanche inclui arroz.

Ser mulher é lindo!

sábado, 10 de março de 2012

O que é que me faz ir ao ginásio day after day after day?

Achar que ainda é possível vir a ter uma barriga destas...


O cúmulo da contraproducência

É ir ao ginásio, dar o litro para queimar quinhentas calorias, chegar a casa e comer duas fatias de cheesecake.

E ainda sonhar, um dia, ser como a Pina Bausch.


PS: Quase consigo um post da categoria do Aflito, que escreve os absurdos mais engraçados que eu já li na blogosfera.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulheres


A partir de hoje, vamos ser mais felizes.
Vamos sorrir mais. Abraçar mais. Perdoar mais. Passar mais tempo juntas.

Vamos ser mais tolerantes.
Com a velha sem força que atrasa a fila do supermercado.
Com a vizinha punk do segundo esquerdo.
Com a loira boazona do nosso trabalho.

Vamos ser menos invejosas. Menos hipócritas.
Vamos ser menos tamanhos de roupa. Menos estrias, celulite e varizes.
Menos rugas e manchas de pele.

Vamos à luta.
Para sermos menos tapadas.
Menos caladas.
Menos apedrejadas.
Menos queimadas vivas.
Menos vendidas.

Um bom dia para vocês. Senhoras, meninas, mulheres :)

terça-feira, 6 de março de 2012

Obrigada M.


Por me perdoares.
E pela prenda mais bonita que eu já recebi nos últimos anos.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Coisas que só a mim

Arrumar a casa em cuecas, armada em boa.

É p'ra quebrar, kuduro vamos dançar, kuduro oi oi oi...


Toca o telefone.

E neste estado de tristeza humana, recebo um convite para uma entrevista de emprego. Em Portugal :)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Vinte e quatro

Os melhores amigos do mundo são aqueles que, no teu dia de anos, usam a música do post anterior na hora do parabéns a você.
E não reclamam quando tu cantas desafinado, com meia garrafa de vinho no bucho.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Este ano,

A minha versão favorita do parabéns-a-você é esta :)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Hoje foi café de gajas tarde dentro

E eu continuo a dizer que tenho os melhores amigos do mundo.

De quem eu já me afastei.
Quando a minha cabeça só congeminava formas de eliminar calorias.
E eu não tinha mais conversa a não ser comida e dietas.

As minhas amigas sabem o que a casa gasta.
Ouvem-me falar de vomitado e não me julgam.
Ouvem-me e só isso já é bom.

Rimos juntas.
E eu não lhes sinto rancor, mesmo depois de eu, de repente, ter deixado de dar notícias e ter desaparecido do mapa.
As minhas amigas perdoaram-me as falhas.
E eu continuo a achar que tenho muita sorte.
Por ainda tê-las a meu lado. Por usufruir da companhia delas, ainda que não seja frequentemente.

Obrigadas :)

06/12/2011

Faz dias que não escrevo. O cansaço é muito.
O calor a partir das dez deixa-me mole. Mas de manhã e à noite o ar é fresco e faz tudo valer a pena.

Nos últimos dias, sou mais do que enfermeira.
Essas camas neste quarto. 
O cardiotocógrafo aqui. 
É preciso etiquetas para a sala de stock. 
O aspirador de secreções na sala de parto. 
Para que me mandam cateteres binasais, se não temos oxigénio em cilindros nem sistema interno hospitalar?
Sou lavadeira também.
Tirar vestígios de tinta e cimento com uma espátula.
Lavar o chão com ácido.
Tirar o pó das paredes.
Fazer todas as camas.

O material está todo na maternidade. Pronta para inaugurar amanhã.
Estou mais nervosa que o director.

Ontem conduzi até Canchungo.
O meu pai, que me chama maçarica, devia ver-me a conduzir um carro de guerra. Lindo. Fiquei ensopada; muito mais esforço do que uma hora de ginásio.

No outro dia embebedei-me. Fiz a espargata. Fui para o quarto ao colo.

Só cenas.

Ainda sobre a A. E outras coisas.

A A. não gostava de mim no início.
Aliás. Custa-me a crer que ela goste realmente de alguém.
A vida foi amarga com ela. Paralisou-lhe o hemicorpo esquerdo.
E ela respondeu a este destino com uma malvadez que se entranhou nela até aos ossos.

Mas hoje, quando a ajudei a ir ao quarto tirar os casacos, e lhe pus roupa mais leve, até articulou um obrigada. Palavra que até à data não constava no seu dicionário, tanto quanto pude constatar.

Eu adoro trabalhar com velhos. Nem lhes vou chamar idosos, se bem que foi assim que aprendi na escola e é neste termo que a sociedade vê respeito.
Quando digo velhos, não falo com malícia. Aliás, adoro tudo o que é velharia.
Basta olhar para a minha roupa. Calças desgastadas e camisolas com borboto. All Stars falsificadas, que já deram a volta ao mundo, e têm a sola castanha em vez de branca.
Com as pessoas é igual. O tempo passa por elas e deixa-lhes marcas. E eu vejo nelas algum encanto. Até nas rugas.

Ainda não me decidi bem.
Por um lado, queria um mestrado em Paliativos.
Por outro, a Saúde Mental continua a ser o meu sonho. Porque com um mestrado destes posso mergulhar mais fundo nos distúrbios alimentares. Fazer um trabalho de investigação até. Ajudar pessoas na mesma situação que eu.

E quando digo ajudar, não me refiro só a tirar os macaquinhos do sótão.
Para mim ajudar, passa também por ensinar estratégias a quem não consegue controlar os impulsos. Seja de comer, seja de vomitar.
Coisas tão simples como ensinar que os dentes não devem ser escovados após o vómito. Porque causa (ainda mais) erosão do esmalte. Bochechar água é melhor. Ou uma mistura de água com bicarbonato de sódio.

Eu sei de cor todas as manhas. Todas as neuroses que nos passam pela cabeça.
Quando vomitas para um saco plástico tens melhor percepção do volume de comida que acabas de ingerir/eliminar. Às vezes até te perguntas como é que coube tudo dentro do teu estômago.
Mas ao perceberes que está tudo cá fora, de novo, num saco plástico, a tensão alivia. E pensas que ao menos isto não foi parar às tuas pernas.
O que é erróneo.

Sim, será Saúde Mental.
E para breve, se der.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Maus fígados

A A. nunca dá bom tempo.
É uma velhota que eu gosto muito. Por ter um feitio difícil e ser necessário engenho para lidar com ela.

Há umas semanas atrás. Levava eu anéis de bijuteria.
- Isso nem é prata nem é nada.
- Pois não. É pichebeque.
- E esse cabelo...
- O que é que tem o meu cabelo?
- Não gosto.

A A. é uma velhota despachada. Diz tudo o que tem a dizer. Não manda recado por ninguém.
As outras senhoras não podem com ela. Os senhores também não.

Ainda hoje.

- Então A.. Que tal o fim-de-semana?
- Ó. Isto... Os homens aqui são todos uns paneleiros. E as mulheres para lá caminham.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

03/12/2011

Hoje de manhã, no Centro de Recursos, os meninos pintavam. 
O pó das mãos passava para o papel, e as folhas brancas rapidamente assumiam a cor dos seus donos.

Um deles encheu-se de coragem. Levantou-se e entregou-me o desenho. Os outros de olhos muitos abertos. Todos muito sérios.
Aceitei-o. Disse que estava bonito e agradeci. Pedi-lhe um beijinho, o qual ele recusou, envergonhado. E riu-se.
Depois, enroscou-se a mim como fazem os gatos. Olhou para os colegas com o ar de vencedor "ó p´ra mim abraçado à branca".

Os outros imitaram-lhe o gesto.
Pedi novamente beijinhos. Só um deles, o mais pequeno, teve coragem de dar o primeiro passo e tocar com os lábios na minha bochecha.
Riam-se todos. Como se um beijo de cara fosse uma espécie de ordinarice. Uma coisa só de amantes.

De repente, tenho uns sete rapazinhos amarrados a mim. Um de cada vez, dão-me beijinhos. Com o cuidado de limpar o nariz ao punho, antes de o fazerem. Que os pretos têm um sentido de limpeza extraordinário, parecendo que não.

Ao Centro de Recursos veio também um rapaz pedir-me dinheiro.
Teve um acidente. Mostrou-me um pedaço de papel. 
A minha colega prescreveu-lhe amoxicilina e ibuprofeno. Olho para ele.

- Irmã, n' ka tene dinheiro.

- Ó rapaz. Eu também não. Tenta arranjar. Pedir à tua família... Não tenho dinheiro para te emprestar. Se não tiveres dinheiro para os dois, tenta comprar ao menos este. Aponto para o antibiótico. É um antibiótico. Para essas feridas não "criarem".

Ele olha para o chão. Agradece e vai embora. Vejo-o desaparecer do meu ângulo de visão. 
Recusei dar dinheiro para alguém comprar medicação. 
E tinha lá outra hipótese? Se o desse, amanhã tinha meia Cacheu a fazer o mesmo. E com que cara ia negar a estes, quando tinha dado ao primeiro?

Os desenhos dos meus meninos. Ainda estão comigo.



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Feliz dia de S. Valentim

A 20 minutos de entrarmos no dia dos namorados, e porque o Facebook está cheio de campanhas anti-violência doméstica.... Eu encho-me de romantismo e publico uma foto com o estado provável do homem que, um dia, decida levantar-me a mão.



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Desabafos de uma tarada sexual

Eu faço anos este mês.
Se tiverem dúvidas relativamente ao meu presente, aqui ficam algumas sugestões.








Sendo que a pessoa da última imagem é do sexo masculino.

Tcharam!


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Recebi um selinho...

Merci beaucoup, Amelie. ! :)


As regras são as seguintes:

1) Link de volta com o blogger que lhe deu;
2) Cole o selinho no seu blog; 
3) Escolha 5 blogs para repassá-lo, que tenham menos de 200 seguidores;
4) Deixar comentário a avisar que vão receber o selinho.

Os blogs seleccionados são...

O da São.
O da  Sahaisis.
O do Enfermeiro.
O dos Ratos.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

02/12/2012

Chega ao Centro de Saúde um rapaz.
Febre, diarreia, história de convulsões em casa.
TDR (Teste de Diagnóstico Rápido) positivo para o paludismo.

Prescrevo num pedaço de papel.
Duas garrafas de soro glicosado a 5%, três ampolas de complexo B, duas ampolas de quinina, duas ampolas de novalgina, um cateter 22G, um sistema de soros, uma seringa, uma agulha, um rolo de adesivo.

Uma mulher vai à farmácia.
Eu vou buscar algodão e álcool. O único material que temos disponível.
A mulher está de volta.

Preparo o soro. Garroto o braço. Cateterizo. Fixo o cateter com adesivo.
Dou a novalgina em bólus. O líquido entra no corpo. Não vejo edema. O cateter parece estar in situ.
Adapto o sistema de soros. Furo a garrafa com a agulha. Abro o sistema e ajusto o débito.
O soro vai correr em quatro horas.

Vou ter com o E. para me certificar de que não falta mais nada.
O E. é recém-formado em medicina. Quando fala comigo não me olha nos olhos. Olha para o meu decote. E eu deixo. Olhar não arranca pedaço e ele nunca me faltou ao respeito.
É extremamente humano e profissional. Adora crianças. Foi ele que se sentou comigo no outro dia e me explicou direitinho o procedimento a ter em caso de malária.

O céu de Cacheu, à noite, emociona-me. Cá em baixo é tudo tão escuro e lá em cima o preto é carregado de pontos brancos.
Escrevo sob uma rede mosquiteira, impecavelmente entalada debaixo do colchão.
Durante a noite, vou acordar num emaranhado de lençóis e rede. Vou acordar com a pele de fora, à mercê dos mosquitos. Felizmente, nesta época do ano não são muitos.
Vou acordar às cinco da manhã, hora a que o muçulmano reza a Alá. Com um megafone.
E vou levantar-me às 7:00, quando a temperatura ainda é amena.

O corpo está cansado. A minha mão escreve em modo automático.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

01/12/2011

Cacheu foi a capital da Guiné há muitos anos.
Hoje em dia, não tem luz pública à noite. Tens de andar de lanterna. Ou arriscares-te pelo breu, se fores parva como eu e não tiveres trazido uma.

Estive na praça de onde saiam os escravos e pus-me a pensar. É incrível como estas pessoas ainda gostam de nós. Apesar do mal que um dia lhes fizemos. Da forma triste e desumana com que tratamos os pais dos pais delas.

Alguns meninos de Cacheu nunca viram um branco na vida.
Quando têm oportunidade, vêm tocar-me. Mexem nas minhas mãos. Para terem certeza de que eu sou real, feita da mesma coisa que eles.
Chamam-me irmã.
Ou branca. E não há um pingo de racismo nisto. Eu também lhes chamo pretos.
Brincamos com as cores.

Hoje distribuí rebuçados a um grupo de meninos. Todos ranhosos, cheios de pó. Têm os olhos mais bonitos que eu já vi. Uma vulnerabilidade que os torna tão queridos. Observam atentamente cada gesto meu. Riem-se do que eu digo, apesar de não perceberem português.

E falando em olhos. Há uns dias mandei uma mensagem ao P.. Burra!
Como é óbvio, não me respondeu. Porque haveria?
A minha vida amorosa é um desastre. Facto.
Sempre fui independente. Mas de repente, a tantos quilómetros... Onde tudo o que vivi até hoje me parece estupidamente irreal, muito distante no tempo... Encho-me de coragem para admitir que gostava de ser protegida.
Gostei tanto da sensação de me apaixonar. Que tonta.

Mais tonto ainda é eu estar a pensar nisto. E dar-lhe alguma importância. E sentir-me magoada porque fui rejeitada.
Penso no bebé com o apêndice xifóide proeminente que vi hoje de manhã.
E sinto-me uma palhaça.
E tenho vergonha de achar que a minha vida amorosa é realmente um problema.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Podia ser eu

Um homem de trinta e tal anos, com esclerose múltipla, a viver num lar da terceira idade.
Poucos estímulos. Motores e cognitivos.

Mais do que corticóides. Do que exercícios musculares. Do que ajuda para tomar banho e comer...

Todos nós precisamos de companhia. De falar. De ter alguém que nos ouça.
Todos nós precisamos de apanhar sol, ar fresco, vento.
De alguém que nos faça rir. De alguém que se ria connosco.

30/11/2011

São dez da manhã no Centro de Saúde.

Uma mulher velha com uma ferida na perna.
Infectada. Tecido desvitalizado.
O E. de bisturi na mão. Eu passo-lhe as pinças.

Ele começa o tratamento. A pinça entra na perna. Sai pelo outro lado.
O E. mal me conhece, mas pergunta-me opinião.

Eu só consigo pensar num hidrogel. Aquacel prata, talvez. Que, como é óbvio, não há.
Aliás. Nem há um analgésico para aliviar esta mulher. Que treme com as dores e oferece murros ao E., enquanto ele lhe escabicha a perna.

- Não sei, E. Prescreve um antibiótico. Amoxicilina? Há na farmácia?
- Há...
- Queres que te traga água? Para limpares a ferida?
- Sim, tens água no balde. Traz Betadine.

sábado, 21 de janeiro de 2012

24/11/2011

A história da A.

Acorda às quatro e cinco da manhã.
Vai vender peixe em Canchungo.
Uns dias vende. Volta para casa com dinheiro.
Outros dias, não vende. O peixe apodrece-lhe. Volta para casa sem nada.

Os homens sobem-lhe para cima.
Dão-lhe dinheiro.
E ela acorda às cinco da manhã para vender peixe em Canchungo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

23/12/2011, exactamente um mês depois

Tenho preguiça de lavar os dentes e de me pentear.

23/11/2011

Às oito e meia chego ao Centro de Saúde. Às nove e treze nasce uma menina.

A mulher despe-se. A mãe dela passa-nos baldes de água. A A. usa a roupa da mulher para lhe limpar as pernas, cobertas de pó.

A mulher está em trabalho de parto há muito. O bebé está em bradicardia. Occitocina intramuscular.

A A. calça luvas estéreis. Pouco depois, ainda com elas calçadas, mexe num balde de sujos.

Alguns puxos. Cabeça de fora. Sai o corpo.

O bebé é aspirado. O cordão é cortado. A pele e o cabelo são secos. APGAR 7/9. O coto é desinfectado com Betadine. Não há álcool a 60%. Vejo a A. fixar uma ligadura à volta da barriga do bebé.

Vocês cobrem o cordão? Não o deixam secar ao ar?
Se o deixarmos descoberto, as mulheres vão pôr lixo. Acreditam que cura. Vão infectar tudo.

Para que me interessa saber que se deve usar álcool a 60%? Se não há?
Para que me interessa saber que a ligadura favorece a humidade e a infecção? Se a usam?
Tudo o que aprendeste é posto em causa e sentes-te ainda mais burra do que é costume.

De volta da mulher. Sai a placenta.
Tem a bexiga cheia. Não consegue fazer xixi.
Pergunto se têm algálias. A A. mostra-me um tubinho pousado numa cuvette.

A mulher é algaliada. Limpa. Coberta com panos que fazem de penso higiénico.
Levanta-se e anda até à outra sala.
Dá de mamar. Descansa.

Vem a mãe da mulher. Lava o chão à volta da marquesa.
Leva a placenta e o líquido amniótico num saco plástico.

Eu pingo suor. A minha visão está meia turva.
Não tenho mais água de garrafa.
A A. olha para mim e ri-se.

Branco pelélé.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Rabisco um livro

PREFÁCIO

Em Novembro de 2011, parti para a Guiné-Bissau.
A passagem por um dos países mais pobres do mundo deixou-me muitas marcas. Algumas tão feias que prometi a mim mesma guardar segredo. O que acontece na Guiné, fica na Guiné. Acontece que no meio de tanta pobreza, pó e baratas, há coisas muito boas. E acho que não as devo guardar só para mim. Não seria justo.
Aposto que a maior parte de vocês nunca pisará aquela terra. Ou porque não têm dinheiro para o bilhete de avião – que é um balúrdio! Ou porque se o têm, vão gastá-lo numa viagem a Paris ou às Caraíbas ou a outro sítio qualquer menos… complicado. Atrevo-me ainda a dizer que conheço boa gente que se fosse à Guiné, não aguentaria uma semana.
A vida na Guiné é dura. E eu sei do que falo; não fui propriamente para um resort turístico.  Apesar de tudo, continuo a achar que é uma terra que vale a pena ser visitada e, por isso, dou-vos a oportunidade de a conhecerem através dos meus olhos. E repito: dos meus olhos. Esta é só a minha experiência – cheia de desabafos tontos! Não esperem deste livro um grande romance. E se eu disser alguma coisa que possa desagradar alguém, desculpem. Para ser honesta, a mim dava-me imenso jeito que este livro fosse um best seller, já que preciso de dinheiro para voltar à Guiné mais vezes. Mas, provavelmente, ninguém o vai ler, tirando os meus pais.
Seja como for. O meu obrigada aos guineenses torna-se público. Por me terem ensinado coisas tão básicas como tolerância, respeito incondicional e paciência. Por me ensinarem, sobretudo, a nunca subestimar ninguém. Agradeço-lhes por gostarem de mim. E me demonstrarem isso mesmo.