terça-feira, 31 de janeiro de 2012

01/12/2011

Cacheu foi a capital da Guiné há muitos anos.
Hoje em dia, não tem luz pública à noite. Tens de andar de lanterna. Ou arriscares-te pelo breu, se fores parva como eu e não tiveres trazido uma.

Estive na praça de onde saiam os escravos e pus-me a pensar. É incrível como estas pessoas ainda gostam de nós. Apesar do mal que um dia lhes fizemos. Da forma triste e desumana com que tratamos os pais dos pais delas.

Alguns meninos de Cacheu nunca viram um branco na vida.
Quando têm oportunidade, vêm tocar-me. Mexem nas minhas mãos. Para terem certeza de que eu sou real, feita da mesma coisa que eles.
Chamam-me irmã.
Ou branca. E não há um pingo de racismo nisto. Eu também lhes chamo pretos.
Brincamos com as cores.

Hoje distribuí rebuçados a um grupo de meninos. Todos ranhosos, cheios de pó. Têm os olhos mais bonitos que eu já vi. Uma vulnerabilidade que os torna tão queridos. Observam atentamente cada gesto meu. Riem-se do que eu digo, apesar de não perceberem português.

E falando em olhos. Há uns dias mandei uma mensagem ao P.. Burra!
Como é óbvio, não me respondeu. Porque haveria?
A minha vida amorosa é um desastre. Facto.
Sempre fui independente. Mas de repente, a tantos quilómetros... Onde tudo o que vivi até hoje me parece estupidamente irreal, muito distante no tempo... Encho-me de coragem para admitir que gostava de ser protegida.
Gostei tanto da sensação de me apaixonar. Que tonta.

Mais tonto ainda é eu estar a pensar nisto. E dar-lhe alguma importância. E sentir-me magoada porque fui rejeitada.
Penso no bebé com o apêndice xifóide proeminente que vi hoje de manhã.
E sinto-me uma palhaça.
E tenho vergonha de achar que a minha vida amorosa é realmente um problema.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Podia ser eu

Um homem de trinta e tal anos, com esclerose múltipla, a viver num lar da terceira idade.
Poucos estímulos. Motores e cognitivos.

Mais do que corticóides. Do que exercícios musculares. Do que ajuda para tomar banho e comer...

Todos nós precisamos de companhia. De falar. De ter alguém que nos ouça.
Todos nós precisamos de apanhar sol, ar fresco, vento.
De alguém que nos faça rir. De alguém que se ria connosco.

30/11/2011

São dez da manhã no Centro de Saúde.

Uma mulher velha com uma ferida na perna.
Infectada. Tecido desvitalizado.
O E. de bisturi na mão. Eu passo-lhe as pinças.

Ele começa o tratamento. A pinça entra na perna. Sai pelo outro lado.
O E. mal me conhece, mas pergunta-me opinião.

Eu só consigo pensar num hidrogel. Aquacel prata, talvez. Que, como é óbvio, não há.
Aliás. Nem há um analgésico para aliviar esta mulher. Que treme com as dores e oferece murros ao E., enquanto ele lhe escabicha a perna.

- Não sei, E. Prescreve um antibiótico. Amoxicilina? Há na farmácia?
- Há...
- Queres que te traga água? Para limpares a ferida?
- Sim, tens água no balde. Traz Betadine.

sábado, 21 de janeiro de 2012

24/11/2011

A história da A.

Acorda às quatro e cinco da manhã.
Vai vender peixe em Canchungo.
Uns dias vende. Volta para casa com dinheiro.
Outros dias, não vende. O peixe apodrece-lhe. Volta para casa sem nada.

Os homens sobem-lhe para cima.
Dão-lhe dinheiro.
E ela acorda às cinco da manhã para vender peixe em Canchungo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

23/12/2011, exactamente um mês depois

Tenho preguiça de lavar os dentes e de me pentear.

23/11/2011

Às oito e meia chego ao Centro de Saúde. Às nove e treze nasce uma menina.

A mulher despe-se. A mãe dela passa-nos baldes de água. A A. usa a roupa da mulher para lhe limpar as pernas, cobertas de pó.

A mulher está em trabalho de parto há muito. O bebé está em bradicardia. Occitocina intramuscular.

A A. calça luvas estéreis. Pouco depois, ainda com elas calçadas, mexe num balde de sujos.

Alguns puxos. Cabeça de fora. Sai o corpo.

O bebé é aspirado. O cordão é cortado. A pele e o cabelo são secos. APGAR 7/9. O coto é desinfectado com Betadine. Não há álcool a 60%. Vejo a A. fixar uma ligadura à volta da barriga do bebé.

Vocês cobrem o cordão? Não o deixam secar ao ar?
Se o deixarmos descoberto, as mulheres vão pôr lixo. Acreditam que cura. Vão infectar tudo.

Para que me interessa saber que se deve usar álcool a 60%? Se não há?
Para que me interessa saber que a ligadura favorece a humidade e a infecção? Se a usam?
Tudo o que aprendeste é posto em causa e sentes-te ainda mais burra do que é costume.

De volta da mulher. Sai a placenta.
Tem a bexiga cheia. Não consegue fazer xixi.
Pergunto se têm algálias. A A. mostra-me um tubinho pousado numa cuvette.

A mulher é algaliada. Limpa. Coberta com panos que fazem de penso higiénico.
Levanta-se e anda até à outra sala.
Dá de mamar. Descansa.

Vem a mãe da mulher. Lava o chão à volta da marquesa.
Leva a placenta e o líquido amniótico num saco plástico.

Eu pingo suor. A minha visão está meia turva.
Não tenho mais água de garrafa.
A A. olha para mim e ri-se.

Branco pelélé.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Rabisco um livro

PREFÁCIO

Em Novembro de 2011, parti para a Guiné-Bissau.
A passagem por um dos países mais pobres do mundo deixou-me muitas marcas. Algumas tão feias que prometi a mim mesma guardar segredo. O que acontece na Guiné, fica na Guiné. Acontece que no meio de tanta pobreza, pó e baratas, há coisas muito boas. E acho que não as devo guardar só para mim. Não seria justo.
Aposto que a maior parte de vocês nunca pisará aquela terra. Ou porque não têm dinheiro para o bilhete de avião – que é um balúrdio! Ou porque se o têm, vão gastá-lo numa viagem a Paris ou às Caraíbas ou a outro sítio qualquer menos… complicado. Atrevo-me ainda a dizer que conheço boa gente que se fosse à Guiné, não aguentaria uma semana.
A vida na Guiné é dura. E eu sei do que falo; não fui propriamente para um resort turístico.  Apesar de tudo, continuo a achar que é uma terra que vale a pena ser visitada e, por isso, dou-vos a oportunidade de a conhecerem através dos meus olhos. E repito: dos meus olhos. Esta é só a minha experiência – cheia de desabafos tontos! Não esperem deste livro um grande romance. E se eu disser alguma coisa que possa desagradar alguém, desculpem. Para ser honesta, a mim dava-me imenso jeito que este livro fosse um best seller, já que preciso de dinheiro para voltar à Guiné mais vezes. Mas, provavelmente, ninguém o vai ler, tirando os meus pais.
Seja como for. O meu obrigada aos guineenses torna-se público. Por me terem ensinado coisas tão básicas como tolerância, respeito incondicional e paciência. Por me ensinarem, sobretudo, a nunca subestimar ninguém. Agradeço-lhes por gostarem de mim. E me demonstrarem isso mesmo.